Porto inseguro de um navio vazio

Sei que você está do outro lado da porta, sentada na cadeira principal da sala, na ponta de uma longa mesa, com outros diversos lugares em outras cadeiras, onde tantos outros poderiam se sentar, mas tem que ser eu em todas e, então, fico do lado de cá da porta, planejando bater e planejando sair correndo, respiro fundo uma vez atrás da outra, suo frio, sinto a boca seca e olhos úmidos, sinto o coração dar palpites de que você vai me comer viva, num crime terrível que ainda não foi catalogado em nenhum código legal, sinto minhas mãos tremerem, pela garganta não passa nem a saliva, sinto tudo isso e nem bato na porta e nem corro, ou seja: gosto de estar morrendo? Gosto de estar na beira do abismo onde nem volto e nem pulo? Sinto que fico pendurada numa corda bamba entre a neurose e a psicose, encaro sua aura que escorre por baixo da porta e que me promete uma nova vida ou um retorno ao inferno; um inferno onde não existe ninguém para ocupar os demais lugares nas demais cadeiras, tem que ser eu e repetidas vezes eu. 

Por que você faz isso comigo? Não quero girar a maçaneta, no entanto, voltar e morar na rua não parece adequado e você espera com paciência, não se levanta, não me chama, não se movimenta, apenas existe e pulsa. Sinto suas veias dentro de mim e a energia química dos seus processos celulares. Sinto tudo. 

Fiquei ontem passando por páginas de um livro que já li, buscando uma resposta de uma pergunta que faço há tantos anos e pelas linhas que eu já tinha lido, pelas sinapses que eu já tinha montado e pelas minhas próprias pegadas, de repente, li o número da porta da casa que sempre vi; eu sempre vi essa casa, sempre soube de sua existência, nunca foi algo invisível, sombrio, distante ou difícil, sempre foi uma casa comum, de uma rua conhecida onde já andei descalça e também com sandálias, já subi e desci, mas eu procurava uma casa escondida, sei lá por quê... então, era aquilo, o número da casa que sempre vi, mas nunca li: é isso que se repete desde que o meu mundo virou mundo, visto que foi meu próprio big bang, então por que motivos seria outra coisa ou outra casa? Não há motivos.

E, então, voltamos àquela cena onde escolhi me ancorar no porto que parecia seguro, dispensei o navio e passei anos supondo como teria sido passear por águas, encarar tempestades em alto mar, ter acesso a espécies variadas, talvez aprender, enfim, a navegar; mas fiquei presa pelo pé, numa corrente que eu mesma encerrei em meu tornozelo. 

E, depois, quando resolvi supor que a corrente era como uma parte de mim e que a partida do navio nada me custou, continuei minha novela e entrei em todos os próximos navios que apareceram porque não consegui dispensar mais nada novo por medo de colocar uma nova corrente em mim, sem entender (ou sem querer entender?), que a corrente original está aqui até hoje e que eu nunca saí do lugar por maior que fosse a fantasia... eu sempre estive aqui.

Como a criança que faz o Fort-da para conseguir ser ativa na situação de mandar embora quem sempre vai embora sem perguntar se pode ir e a deixa nessa passividade de suportar o sofrimento da ausência de tudo que é mais importante. Da mesma forma que ela preferiu não chorar e apenas brincar em silêncio, pareço ter resolvido fazer isso também, substituir o grande desprazer de minha vida por essa pequena ilusão de controle de tantos passeios, de tantas coisas novas, de tantos fracassos em espiral. 

E então, hoje, você está do outro lado para definir de uma vez por todas se esse novo navio (vazio) me levaria a um novo destino de uma vez por todas, onde haveria a tão esperada chave de liberdade de tudo que me afunda tanto ou me dizer que eu posso, finalmente, escolher um porto que seja realmente seguro e isso me custa ouvir, seja lá para onde eu deva ir, me custa muito. 

E é por isso que continuo sem coragem de te olhar nos olhos: porque eu sei que você não mente, é a única parte de mim que não mente. 

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