Fort-da

O impulso demoníaco que nos arrasta até as pedras sempre volta com ondas gritantes de modo que não nos parece possível não obedecer e, se, de alguma forma, isso se transforma em vozes compreensíveis talvez tenhamos a observação de parte de uma alucinação mandatória que assusta, que atormenta, que não nos permite realizar nada além do que se deve e não sabemos por quê nem para quem devemos, mas ouvimos a voz que nos diz que precisamos fazer, que existe a necessidade de repetir, que faz parte de nós, que, de outra forma, não é a nossa vida em palco. 

Sustentar o estado de tensão que abaixa meus ombros e minha cabeça é mais pesado que a existência. Certo dia, notei que havia algum tempo em que eu sequer olhava para a frente, apenas para baixo, como se um demônio tivesse sentado em minhas costas e eu o carregasse dia e noite. Não sei marcar num calendário o dia que a angústia retornou, mas sei que, de todos, ela é a única que não mente, que alguma coisa péssima vai mesmo acontecer, e acontece, sempre acontece, ela difere do temor do que alguém pode me entregar e até mesmo do terror de quando, por vias de fato, recebo a lesão, o trauma, a doença, o óbito. 

De forma bizarra, hoje recolhi minha existência e me perguntei com toda sinceridade para onde estou tentando ir. E como no primeiro passo dessa caminhada, que me fez ser outro alguém, respondi coisas horríveis, que não queria responder para ninguém, mas me dei a oportunidade de me salvar nessa perdição, outra vez, mais uma vez, e como provavelmente ainda em outras (tantas?) a frente: ter o domínio do peão que não é peão, parar de ser submetida passivamente ao enlace da programação do destino, brincar como se eu nunca tivesse aprendido a falar, ser ativa e ter decisão no que me mata e me salva. 

No entanto, estar no papel principal me ausenta de ser tudo aquilo que caminhei descalça e por tantos caminhos, me custa a minha alma ativar um jogo, apesar de que, contraditoriamente, isso seja eu, isso seja a minha história, as minhas repetições, a minha programação inicial, tudo que eu invisto para a vida e para a morte é isso. É o fort-da tão arcaico de nós. E, penso, que o seu seja esse desequilíbrio de achar que o mundo inteiro é menos importante que você e que seus princípios são imediatos e ralos, atingindo a minha existência como a de tantas outras de uma forma tão superficial que não posso, sequer, nomear de covardia porque todos os passos que eu dei, todos os demônios que olhei nos olhos, todas as almas que tive e tenho estão em dimensões que a sua programação e repetição não conseguem alcançar, não se forem isso. 

E eu consigo sustentar a tensão, assim como consegui sustentar a culpa enigmática quando decifrei que está além de mim e nenhuma tensão, repetição, culpa ou desprazer poderiam resumir o meu desejo, pois, caso fosse, eu estaria condenada a não avançar, a não me respeitar nunca, em nenhum dia sequer e eu me lembro de alguma forma que as respostas não foram todas escancaradas, eu me lembro diariamente, pois quando me pergunto o que está acontecendo e o motivo de não estar feliz, eu não sei, e a culpa e o fort manipulam a imagem para fazer parecer que é por você, mas não é. 

Os ponteiros do relógio sempre querem chegar a algum lugar e, da mesma forma, também se distanciam desse mesmo lugar e essa dança não é minha para você, é minha para mim e não vai adiantar eu esvaziar essa tensão que derruba meus ombros com você ou com quem quer que seja porque a tensão sou eu e não há como acabar comigo.

Montei uma guerra grandiosa para saber que há conforto por baixo de tantos giros e sulcos e que não é o seu "da" que me finalizará numa trincheira qualquer, pois quando o demônio da escuridão se aproximou tantas vezes, quando minhas células se empenharam em dar um passo ao não orgânico, nas noites em que não sonhei e me aproximei do fim de tudo, nada teve a ver com você, nem com ninguém, cada um morre por causas internas e essa repetição me distancia de todos os passos que dei, me distancia de tudo que me apaixonei por mim, me deixa séculos atrás de todo avanço interno, me faz esquecer de cada poeira que precisei varrer de cada célula e se o preço disso é seguir com o único sentimento que não mente, eu aceito, da mesma forma que aceitei universos inteiros em silêncio porque aceitei serem só meus, então aceito, mas não vou abrir mão de mim por um jogo de peão. Até o fim do dia, não.

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