Realocação

Não sei se vou conseguir ser o que espero ser quando chegar a hora de ser e apesar de, aos trovões e derrubadas, eu ser, atualmente, na maior parte do tempo, o que desejo ser, não tenho certeza se tá certo. Não sei se estou em paz ou se é apatia. Não sei se o que me cerca é a sua ausência ou se você nunca esteve aqui. Atuo, sozinha, em cenas onde você aparece. Converso com você. E sempre fujo. Sempre fujo antes de você me deixar. É assim minha vida há muito tempo. Desaparecendo antes de correr o risco das coisas desaparecerem. Sinto medo da responsabilidade que cresce, diariamente, em cima das minhas costas, sinto que talvez eu não esteja tão preparada quanto alguns amigos e sinto, às vezes, que estou exatamente no meu ritmo, então não há motivos de preocupação. O mundo é uma imensidão monstruosa que me diz, num sussurro assombroso, que pode me devorar porque eu sou só, e de acordo com o passar dos dias, fico ainda mais. E eu sorrio de volta porque o máximo de proteção que consigo me oferecer é não me proteger. Não tenho feito muito sentido e isso deu um sentido bem mais claro aos meus passos. Não tenho moído tanto os meus pensamentos, e isso me trouxe uma quantidade superior de paz. Às vezes, na janela, vejo você no escuro do céu e naquela luz vermelha em frente a ela e sei, não sei como, que você me sente. Você apareceu e não foi cena e eu não conversei, só fugi. Nem sei o que estou falando. É complicado lidar com sua morte quando sei que você está vivo. É complicado lidar com minha vida quando sei que sumiram algumas partes de mim, mesmo que não tão boas... porque faziam parte do que sou. Eu não saberia, muito provavelmente, realocar você em alguma parte da minha nova existência. Não saberia te olhar sem lembrar por um segundo que a sua alma sugou parte da minha e a triturou para sempre. Acabou de verdade as coisas que você nunca permitiu começar. Já faz tempo, eu sei. Hoje eu vi o rosto que derrubava, diariamente, meu juízo antes de você aparecer e não consegui em nenhuma fração mínima do tempo, lembrar o que eu fazia ali. Nenhuma das coisas anteriores a você faz sentido. Nem mesmo você. Minha memória falha e isso não acontecia, mas ainda bem porque essa é a única forma de não conseguir encaixar perfeitamente alguns momentos ao seu lado. Hoje não dormi o dia inteiro apesar de exausta porque sabia que não ia conseguir pelo enorme copo de café que tomei. Eu estou bem porque não há mais nenhum espaço que não já tenha ficado mal. Sendo curada das paranoias que expus até para você. Cuidando de mim, oferecendo ajuda, diminuindo a toxicidade social. E sei que disse que não sabia viver sem você, mas talvez, tal-vez, eu tenha que te deixar ir em qualquer hora dessas. E te ver em algum hospital, talvez. E não sentir nada, talvez. E não lembrar, por nenhuma mínima fração de tempo, da reconstrução monstruosa que você me permitiu fazer ao me destruir e continuar, ainda assim, reconstruída. Acho que meu namorado gosta muito de mim, acho que a mulher do mercantil também, assim como meus colegas de rotina, assim como meus irmãos e assim como eu... Isso me deixa triste, pra baixo, numa dúvida absurda do porquê você e seu mundo não puderam gostar. Mas sigo. Ainda assim. Só porque segui até aqui.



Comentários