Revestrés

Ao rodar a chave da porta da rua para entrar em casa, quase sempre lembrava de um dia que escrevera, muitos anos antes, ainda no colégio, sobre alguém que rodava uma chave e entendia, num insight, o significado de nostalgia. Perguntava-se a si mesma se apesar de ter escrito em terceira pessoa aquele texto tão antigo, estava realmente falando dela. Não por ter a dúvida que os leitores poderiam ter, mas por procurar, na infinita caixa de lembranças, alguma coisa no passado que fizesse tanta falta. A falta que sentia era de sentir falta, porque não sentia. 
Como alguém que nunca esteve presente pode impor uma ausência? Isso poderia ser possível dentro dos limites humanos? Acreditamos que não. Subia as escadas com a sensação de que não poderia não estar bem porque devia, a si mesma, evitar o mal-estar. Era talvez uma nostalgia reversa. Saudade do futuro. Saudade de ter e ser de alguém por mais infantil ou adolescente que isso soasse. Detestou por mais de mil dias, por muito mais de mil, sem dúvidas, admitir que precisava de alguém. 
Um dia, enquanto trabalhava, notou que, sem nenhuma palavra, mas com vários olhares cortantes, os outros a admiravam por sua autossuficiência, e muito mais do que depender de aprovação pelo que não era, ela era? Ela provavelmente sabia que não era, mas por saber que não era, muito possivelmente, então, ela já era. Sim, só por saber. A sensatez costuma ser um revestrés de uma posição ou condição tomada ou aceita. Muito mais que depender disso, porque ela não dependia, era temer pedir ajuda. Como poderia pedir ajudar no que não sabia explicar em que queria ser ajudada? 
Outro dia, enquanto tinha alguém dormindo em seu colo, respirou fundo e desejou ser correspondida e aí lembrou que ela mesma não correspondia quando queriam. Era sempre isso. Nunca o peso exato para os dois lados. Sempre tendo que escolher ser mais ou ser menos, nunca tendo a opção do igual. Então como poderia chegar em casa, abrir a porta e ser feliz se fosse mais ou se fosse menos? Não existe um padrão mundial que permita que as coisas se equilibrem antes da morte? A gente precisa do desequilíbrio desde as membranas das nossas células, sabemos, mas então isso realmente é refletido até a última esfera?
Ela e todos nós devemos nos contentar que a opção é, e sempre vai ser, ser mais ou ser menos? Doar-se mais ou aceitar demais? Então é isso? Não existe neste planeta uma lei regente que possibilite o equilíbrio? Quem, então, inventou essa palavra e seu significado utópico? 
Pela janela do quarto, onde em tantas noites anteriores suas preces foram, se não ouvidas, pelo menos expostas, lembrou que a mesma pessoa que tanto frisou que "enquanto não escolhemos, tudo permanece possível" foi a mesma que frisou ao fim que "quando não escolhemos, as coisas amadurecem tanto que ficam podre e caem". Não escolher também era uma escolha. Escolher ser mais para um alguém ou ser menos para outro alguém era algo que soava injusto. E injustiça é humanidade. E isso não deveria ser assim. 
E aí dormiu.

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