Luminescência


"[...] De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé — muita coragem, fé em quê?
Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lóri
tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra
mão de Ulisses empurrava-a para o abismo — em breve ela teria que soltar a mão menos
forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de se brincar porque em pleno dia se
morre. [...]


[...] Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar
do silêncio como se fala da neve. O silêncio é a profunda noite secreta do mundo. E não
se pode falar do silêncio como se fala da neve: sentiu o silêncio dessas noites? Quem
ouviu não diz. Há uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele e de adorá-lo
sem palavras. [...] 


[...] E então você não quis mais nada disso. E parou com a possibilidade de dor, o
que nunca se faz impunemente. Apenas parou e nada encontrou além disso. Eu não digo
que eu tenha muito, mas tenho ainda a procura intensa e uma esperança violenta. Não
esta sua voz baixa e doce. E eu não choro, se for preciso um dia eu grito, Lóri. Estou em
plena luta e muito mais perto do que se chama de pobre vitória humana do que você, mas
é vitória. Eu já poderia ter você com o meu corpo e minha alma. Esperarei nem que sejam
anos que você também tenha corpo-alma para amar. Nós ainda somos moços, podemos
perder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja o
que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado,
acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos
passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído
catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos,
tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria
o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do
primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes
sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar
a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a
palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e
de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar
nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos
disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia
disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso
nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado
uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a
tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós
mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não
ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não
sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa
de cada dia. Mas eu escapei disso, Lóri, escapei com a ferocidade com que se escapa da
peste, Lóri, e esperarei até você também estar mais pronta. [...]"

Clarice Lispector

Comentários