Luminescência II

"[...] Vai recomeçar, meu Deus? Perguntava-se então. E reunia toda a sua
força para parar a dor. Que dor era? A de existir? A de pertencer a alguma coisa
desconhecida? A de ter nascido?
E depois, estancada a dor como se não tivesse sequer havido, exausta, após ter
nadado quilômetros no universo vazio, ficara ofegante, jogava-se nas areias brilhantes de
um planeta, imóvel, de bruços. [...]


[...] Mas sentia uma pressa por dentro, sentia pressa: havia alguma coisa que ela
precisava saber e experimentar, e não estava sabendo e nunca soubera. E o tempo de
algum modo estava ficando curto, não demorava que voltassem a funcionar as escolas.
Temia que Ulisses se cansasse daquela sua resistência paquidérmica em deixar o mundo
entrar nela, e desistisse. E o desespero a tomava. Sabia que ainda não estava pronta
para dar-se a ele nem a ninguém, e nesse ínterim talvez ele a largasse. O desespero
numa dessas tardes ensolaradas cresceu. De repente deixou-se deitar na cama de
bruços, com o rosto quase enterrado no travesseiro: a dor voltara.
 A dor voltara quase fisicamente, e ela pensou em rezar. Mas logo descobriu que
não queria falar com o Deus. Talvez nunca mais. Lembrou-se de que uma vez, de férias
numa fazenda, deitara-se de bruços numa clareira do matagal, encostando o peito na
terra, os membros na terra, só o rosto virado para o chão era protegido por um dos braços
dobrados.
A essa lembrança, que visualizou de novo, pensou que de agora em diante era
só isso o que ela queria do Deus: encostar o peito nele e não dizer uma palavra. Mas se
isso era possível, só seria depois de morta. Enquanto estivesse viva teria que rezar, o que
não queria mais, ou então falar com os humanos que respondiam e representavam talvez
Deus. Ulisses sobretudo.
[Não sabia mais de nada. E apesar de se sentir agora muda em relação ao Deus,
percebia em si a vontade intensa quase pungente de se lamentar, de acusar, sobretudo
de reivindicar. Parecia-lhe que já fora tão experimentada que agora lhe deveria chegar,
dentro da lógica romântica dos humanos, a hora de receber a paz. Já nem ousava pensar
em alegria, que ela não sabia propriamente como era, mas em paz. O que seria uma
alegria? Ainda teria capacidade de reconhecê-la, se viesse? Ou já era tarde demais para
que soubesse distingui-la. Pois ela adivinhava que a alegria viria talvez como um som
simples quase aquém do nível de audição. Então ela, que nunca mais falara com o Deus
cósmico, disse-Lhe em súbita cólera: eu nada Vos dou porque nada me destes.
 Porque ela parecia saber que existia algo — o quê — que os humanos davam
para o Deus — como? E ela nem mesmo queria mais saber o que era. Só que sentiu que
o Deus também precisava dos humanos — e então negou-se a Ele. [...]"

Clarice Lispector

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