30.000 pés

Existe uma máquina quebrada e sem obsolescência aqui em mim. De algum jeito, minhas vísceras foram viciadas pela essência de um mal estar virtual. Não fosse ele, seria você, não você, alguém... Uma sacola na rua, o meu melhor sonho, um grão de poeira no Egito. Qualquer coisa. Seria qualquer coisa. Digo isso não por querer ou por achar bonito porque no final da soma eu acho isso bem feio e vergonhoso. Espero um dia descobrir que verdadeiramente isso é um transtorno mental derivado da infância onde meus pais não cuidaram de mim e eu superei tanto, tanto, tanto que nunca superei e aí viciei nesse tipo de loucura. Espero que um dia alguém me entregue um certificado de que o que sinto não é real e, sim, uma agonia travestida. 
Fiquei pensando, ainda, que minha vida é uma montanha russa programadíssima onde agosto é sempre um bom mês e a partir de dezembro é só descida sem freios, mas isso também é amaldiçoar uma completa existência, aí pintei na cara que "nada a ver", não pode ter a ver porque não quero que tenha, eu rezo para que não tenha. Fiquei pensando que é a segunda vez que sinto que uma bazuca dilacerou meu estômago quando penso que te perdi, quando penso que me deixei te perder.
Sei que você ronca, sei que você dormiu em mais de noventa por cento de todos os filmes que vimos, que você não se concentrava em nada do que eu falava, que você atrasava em nossos encontros, que não ia cuidar da sua saúde como eu queria que cuidasse, que comia um milhão de porcarias contra todas as minhas súplicas, que compra tanta coisa tecnológica e fútil, que calça tênis com bermuda, que usa boné, que rói as unhas até arrancar os dedos, que deixava toda decisão do mundo para mim e trezentas mil coisas ridículas que posso passar o resto da vida listando, mas você, só você no mundo inteiro, teve paciência de ouvir onze temporadas, 244 episódios, narrado pela voz mais destonada que já ouvi: a minha. Só você foi capaz de aparecer no dia seguinte ao me ver chorando por horas sem nunca explicar o motivo. Capaz de perdoar toda a minha grosseria e insensibilidade frente ao que tanta gente não perdoa. Só você conseguiu entrar e permanecer em minha vida no momento mais sensível e lacerante que ela já passou. 
E eu deixei você ir igual deixo a água da toneira da pia do banheiro escorrer por meus dedos.
Não posso nem dizer que tenho que te deixar ir porque você é incrível, nem dizer que você deve mais que ir porque foi o único que não odiei. Obviamente senti raiva um milhão de vezes e sentiria mais se aqui ainda estivesse, mas certamente ninguém nunca cuidou tanto de mim e nunca me fez sentir tão útil ao dar cuidados também. Não posso dizer isso porque você já foi. Você sempre teve a mania infeliz de me deixar ter a última palavra, mas dessa vez é feliz porque posso dizer que tudo que você fez foi ser bom e não há ninguém que se compare. 
Fiquei pensando que sou meio totalmente idiota porque não vou achar alguém igual, logo, não poderei casar, mas como falei, eu não sou apenas eu, existe a porcaria de uma máquina pesada e exaustiva dentro da minha cabeça que me faz pensar que quero coisas que nem existem e ela sabe que não amo o que quero e ela sabe mais ainda, mais do que eu mesma, que eu nem sei o que quero e por isso estou aqui sem você e meio sem mim. Pela primeira vez, em tanto tempo que nem sei se é possível medir, eu não faço a menor ideia do que quero, logo, não posso me dar algo.


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