Corra muito além da escuridão. E corra, corra!

Tá tudo bem, digo. E arranco a tampa do dedão um segundo depois. Tá tudo bem, ainda tenho o pé e até mesmo o resto do dedo. Tá tudo bem, repito. Acordo e sinto aquele cheiro da sua dor que me vestia. Sei que, no fundo, a dor sempre foi só minha e nunca teve nada a ver com você. Mas o cheiro ainda é seu. Um cheiro de proteção. Não da que eu precisava (ou preciso) receber, mas de uma mistura de doação e presente. Em algum ponto de um minuto do passado nós vivemos algo tão intenso que marcou algum órgão meu. Não meu coração, muito menos meu cérebro, mas algum outro não vestigial. Talvez o fígado e talvez eu possa arrancar a parte que você ficou nele e doar a alguém um dia. Ou em um rim, podendo assim me desfazer também. Ou a vesícula. Ou qualquer outra coisa que eu não precise levar até a morte, como a pele inteira. Vai ver você é a tampa do dedão que ainda não caiu. Quase nada, mas não todo um nada. Sinto seu  cheiro e levanto, aí ele some e sou preenchida por tudo que tenho (e amo) hoje. E apesar de ser infinitamente mais cheiroso, não me preenche. Uma vez me disseram que só estamos preenchidos totalmente quando mortos. Estou, portanto, viva. Assim, comemoro não estar completa e no meio da dor do vazio, falo baixo que "tá tudo bem", pior seria estar morta. Será? Oro diariamente para esquecer minha idade, meu atraso e parar de achar que mereço mais (ou menos) que alguém. Oro com cada célula para que todo dia seja o último  nesse tormento onde todo mundo alcança a praia, menos eu. E, então, penso "não dá para não engolir água e pisar em terra firme enquanto não se sai do mar", então eu nado e repito "tá tudo bem" e continuo a nadar.



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