E o corpo ainda é pouco

O'Malley disse que não dava para morrer agora e ter um "Morreu. Mas e aí? Foi só?" porque, de novo, eu rezei "Vó, vem me buscar", como se ela fosse a morte, como se ela fosse me matar. Passei meses me preparando para, além da preparação principal, não morrer. Vai ver, por isso não morri. 
Optei por não falar com ninguém também. Como nos filmes, quando acontece algo ruim e a tonta da protagonista afetada sai correndo. Sai correndo do problema. Mas o problema e a dor saem correndo atrás. E tem gente que sai também. Certo que abraço é bom. Mas não dá para abraçar alguém sem antes se abraçar. Exceto para aqueles abraços tão fortes que são contra sua vontade, que soam como "vou te abraçar e fuja se conseguir, porque eu vou te abraçar, sim". 
Mas aí deu vontade de desistir e não sei se a vontade já foi ou tá do meu lado. Porque eu não consigo olhar pro lado. Estou tonta de olhar para trás e para os dois agoras que eu seguro. Agora não se coloca no plural pelo simples óbvio de ser um. Mas me deram dois. E eu não posso dar um deles porque ambos são meus. E ninguém consegue dar um agora. 
Olhei para trás e me vi deitada num chão de pedras, achando que aquele agora não ia passar nunca, porém, hoje ele já passou tanto que eu não lembro nem porque deitei no chão, eu podia ter aguentado de pé se eu soubesse que ia passar. Mas eu não sabia, e esse foi o motivo de deitar.
O agora um é normal, deve ter tanta gente passando mal também. Não que eu deva me conformar com isso porque eu não sou todo mundo, não cabe nem metade do mundo em mim, imagine ele todo. Então tem que doer mesmo e preciso achar que não vou aguentar mesmo e talvez deitar num chão mesmo, se não de pedra, algum de prego ou aguentar em pé mesmo, contanto que doa. Porque é normal que doa. 
O agora dois é que tá tudo bem, eu fiz um auto curso de equilíbrio e estou tranquila. Como? Como posso estar tranquila e morrendo de dor ao mesmo tempo? Não sei. E penso com a dor que a culpa é minha, que é por não ter sido mais humilde ou mais simpática ou por ter dormido ou vivido ou respirado. Vai ver a culpa é minha porque eu respirei. 
E do agora dois, nasce uma ramificação de um agorinha dizendo que eu não devia estar bem, não, porque isso deve derivar de um conformismo parasitário e as coisas não podem ser assim porque eu não posso ficar nesse carrossel sem descer nunca, enquanto a hora de todo mundo acaba, a minha não chega ao fim. E eu já parei de brincar, mas ninguém para esse motor. E não dá para descer sem cair. E sem ter que explicar que não é porque eu tenho as pernas fortes que eu vou correr até eu mesma não conseguir mais me alcançar. Porque se eu sair, eu vou querer voltar. E eu não tenho nem tempo, imagine tempo para perder. 
Aí sigo girando, fingindo que não estou tonta, fingindo que não vomito, rindo das minhas próprias piadas doentes porque adoro minhas piadas doentes. Mas de vez em quando dá pra encarar rápido o chão e desejar me jogar nele, dá para sentir o peso quase me derrubar. Mas quase não é conseguir. E porque ele não consegue, dá para levantar o queixo de novo. E de novo. E de novo. E até sei lá quando.
Em alguns minutos Carrie vai me mostrar alguma coisa boa, alguma força de vontade de ser grande, genial e competente igual a ela, mesmo que ela morra todas as noites em cima da própria cama. Bernardi pintar com palavras que eu não estou sozinha nesse infinito de drama. Meu namorado com a compreensão de que eu nem toco nesse celular pelas próximas horas. E se não entender, nada. Não tem nada porque eu nem sei explicar de tanto que dói que eu não consigo nem conversar.
 O'Malley disse que não dá para morrer só com isso. "Foi só isso?", não sei, não morri.


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