Micela

Tinha uma menina do meu lado falando alto, olhando pela janela, falando muito alto, contando à sua avó sobre um segurança alto, que trabalhava numa igreja e que mandava em tudo. Segurança de igreja manda em tudo o quê? Ela não estava exatamente do meu lado, estava duas cadeiras a frente, mas podia estar no meu colo de tão alto que falava. Eu podia pensar em outra coisa como na questão da micela. Porque não sei o que é micela. Só sei o que é micélio. E mal. Porque quando penso em fungos, lembro das comidas com fungos. Todo mundo já viu comida com fungo. E tapurus. Meu Deus, nada, para mim, é mais horrível. Manda mais cinco relacionamentos horríveis que me deixe meses em cima de uma cama, que me faça chorar no meio de oito festas e que me torne extremamente chata e depressiva, envia o corpo aberto de animaizinhos pela estrada, a cabeça deles esmagada, olhos arrebentados, mas não coloca comida estragada na minha frente.  Porém, a mulher não deixava eu pensar em nada disso. Ela estava com um filho que era maior que ela porque ela tinha cara de ter dezesseis anos. Ok que eu não aparento lá essas idades todas. Há três dias, no cinema, censura de doze anos (doze!), pediram minha identidade. Acho que as pessoas gostam é de brincar mesmo, não há possibilidade de outra coisa que não isso. Mas a menina tinha um filho e ela era muito nova para estar falando com a avó sobre um segurança que manda em tudo e não cuidando direito de uma criança. Aliás, por que ela cuidaria direito? Ok que é preconceito da minha parte achar que pessoas novas não cuidam direito de crianças. Ontem achei no fundo da minha cabeça que não quero ter filhos porque acho que não vou ser uma boa mãe. Ou achei ou coloquei. Não sei. Estou nova. Mais velha que ela, mas muito nova para isso. Estou. E é difícil para mim acreditar que existam muitos casos em que a criança nascida tão rápido de meninas que, como aquela, quase certamente mais nova que eu, foi planejada. E aí eu penso no reverso que a cultura tem se transformado. E agradeço imensamente por, apesar de ter uma cabeça tão atravessada, ser coerente, pelo menos, comigo. Ela nem olhou para trás para notar que já tinha cento e vinte e nove estudantes entre ela e a porta do ônibus porque era muito mais importante conversar com a avó. E eu senti uma agonia tremenda quando ela notou que seria difícil descer no meio do nada com uma criança. Seria mais fácil descer na universidade. Mas foi mais fácil para ela ter um bebê. E aí tentei respirar fundo e repetir mentalmente que eu não tenho nada a ver, que nem era eu que ia descer, que eu estava ótima, que o único problema tinha sido esquecer os meus fones de ouvido porque é isso que todo mundo que finge que não tem nada a ver faz: usa fones de ouvido.