U-235

Durante um mol de dias, senti um abismo dentro de mim. Todo mundo deve ter um penhasco no esôfago. Uns resolvem fingir ignorar, outros se matam diariamente. Quando, por fim, alguém se dá conta do quanto está sozinho no meio de sete (oito?) bilhões de cabeças inacessíveis, percebe que assumir ser sua melhor (e única) companhia não é um ato doentio e, sim, questão de não ser cego. Não quero amaldiçoar a minha vida e dizer que ela se veste com um pano chamado azar. Poucos têm tanta sorte como eu e falo isso todos os dias de manhã no meio de tudo que leio e releio que está colado no guarda-roupa. Como extremar a sorte seria a coisa mais pobre e listar minhas dores seria o resumo de todos os textos anteriores, poupar-nos-ei. Usar mesóclise é a segunda coisa mais pobre do mundo. Pois bem, todos os nêutrons que atingiram os núcleos de urânio em mim, acenderam, posteriormente, toda a força de ver que a sorte só pode existir na presença do azar. Houve dias em que eu não quis acordar de manhã. Nem de tarde. Que eu apenas não queria ficar de pé com os olhos abertos neste mundo. E isso, embora eu sempre tenha que dizer que foi por minhas pernas, foi em função do que, comumente, chamam de amor. Quando eu amei, fiquei tetraplégica. Mas não vim até aqui dizer que não quero amar nunca mais. Eu amo todos os dias. Mas nunca, nunca mais, pelo menos não no que depender dos meus braços, além do meu tamanho. E sou pequena. Hoje, posso concordar em número e grau que "o que importa é o que te faz abrir os olhos de manhã". E o que faz isso é o reverso das pessoas que amei ou que assim julguei sentir. Aceito, educadamente e feliz, a substituição. E se ser egoísta é isso, eu não tenho a intenção de ser humilde.

Comentários