Alfa

Tenho a sorte maravilhosa de atravessar meses ensurdecedores e ter uma boa audição. Sorte de ter desenhado um desejo e ter sido presenteada com ele em um papel cinco vezes mais bonito. Quantas pessoas no mundo esperam coisas da sorte? 
Eu não sou uma delas. 
Talvez, por isso, elas sempre chegam por aqui. 
Um dia, uma amiga disse que eu era muito perturbada em dizer que sempre fui feliz e sortuda por ter quatro membros e nenhum câncer porque ela ousou me lembrar que ousei ignorar todas as metástases e lacerações passadas e aí eu concordei "é, querida amiga, você tem razão", mas ela não tinha, não. Se passou, se acabou, se o caminhão de lixo já foi, se o remédio fez efeito, se a operação foi um sucesso, o que me levaria a tatuar um lembrete de dor? 
Nada me leva. 
Você, no entanto, por mais que não me assuste, dança perfeitamente bem. Por mais humano que seja, ainda não pisou no meu pé e ainda não cansou de sorrir e nem de me fazer. Minha mandíbula, por mais esmagada que já tenha sido, ainda não doeu contigo. Meu relógio, por menos ponteiros que já não caibam, ainda tem espaço para você todos os dias e por pior que seja o pouco tempo e essa minha doença de temer alguém ser maior que eu em uma relação nem dói mais porque toda a agonia passada me fez parar de querer. Eu não quero você. 
E eu te quero tão pouco que eu te tenho aqui. 
No mesmo cálculo em que não há resultados de eu ser sua, não há de você ser meu, assim, ninguém se perde, assim, estamos bem. Assim, você pode ficar. Assim, eu posso dizer, pela primeira vez, que você é a única pessoa do mundo a ter um tempo que caiba na minha falta de tempo. 



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