Afogamento gravitacional

Eu não amo mais você. E tantos anos depois ainda não completaram os breve tantos aos quais uma praga me joguei. Numa minúscula sala de um minúsculo apartamento cinza. Ou era branco? Meus olhos te gritaram no tom mais doce e sincero que eu seria sua dentro de determinados anos. Tais anos longe para que eu crescesse e para que você tentasse fazer o mesmo. Oitenta mil anos nos separam agora, mas os citados, nada. Agora, faz pouco mais da metade do prazo e eu não te amo mais. E é uma pena porque ao final deles, eu deveria estar curada da doença que era te ter e te ser, porém, ainda ter você em mim, mas o final está longe e a praga é ter memória. 
Gostaria de me afastar cada vez mais para que, quando o tempo dado finalizasse, eu pudesse estar a quilômetros e hectômetros, no entanto, anos depois de ter permitido que você sentasse no sofá da minha insanidade e tivesse o controle dela em mãos, eu detesto a pessoa que você é. E as roupas feias que você veste. E os lugares chatos em que você anda. E a forma retardada que você ingere bebida alcoólica. E o quanto você acha que muda o mundo com suas drogas de esquina e seus amores de atravessar a rua. E suas coisas que taquei fogo e que de novo o faria. Detesto a sua cara e todo o seu corpo. Mas detesto tanto que chego a não detestar como um papel amassado de estequiometria: foi bom, ruim, desgastante e construtor, mas existem trezentas e quarenta e oito questões iguais só dentro do meu quarto. 
Você não é nada. Nunca foi. Os dias e meses em que um buraco morou dentro de mim, era substituto de mim mesma, da parte que matei para trocar por você. Ontem, comecei a chorar do nada e lembrei que nunca faço isso na frente de ninguém (chorar do nada), mas um dia fiz na sua e você achou que eu fosse louca. Outro dia, fiz de novo e você teve a certeza que eu era. Um dia, você agradeceu tudo de bom que fiz em sua vida e afirmou que nunca fora uma pessoa tão boa antes, muito menos depois. Outro dia, lembro de morrer com o coração na mão em sua frente enquanto você não gostava mais de mim. 
Ontem, porém, eu tinha crescido sem você, mas sentia a mesma agonia que senti a vida inteira por ter meus pais tão longe e não me deixar culpá-los por minha instabilidade emocional porque "é besteira, coisa de filme, não tem nada a ver" e a nunca culpar você porque "a culpa foi minha, ninguém segurou minha mão e puxou". Você puxou, sim, a droga da minha mão e eu detesto até hoje o jeito que minha mãe ainda olha para mim e os mais de dois mil quilômetros que existem entre mim e meu pai. E agora que estou tão feliz, posso finalmente falar que a culpa de eu ser eu não é só minha. Agora que estou feliz, posso falar que minha vida entrou numa estrada não linear e não clara depois que minha vó morreu. Agora que estou feliz, consigo dizer que eu me sinto só o dia inteiro, todos os dias e que isso deixou de ser uma escolha desde que descobri que tem gente perturbada o suficiente para nos culpar por alguma coisa que chamam de amor. Estou imensamente feliz porque consigo, finalmente, falar sobre tudo isso e lembrar que, embora você não signifique nada para mim, ainda me permite começar a escrever textos esquisitos em que tudo pode ser inventado, inclusive o "você". E que o "você" pode ser um conjunto de gente nada a ver. 
Ontem, quando entrei em casa, não esperei ninguém para me dar boa noite porque o objetivo da minha vida não é ter alguém para fazer isso todos os dias. Embora, atualmente, eu tenha. Embora, atualmente, eu tenha a quem dar bom dia diariamente. Embora eu tenha achado alguém tal e como um dia desenhei e que em trinta e quatro dias nada me irritou. Lamento pelo quanto você perdeu, agradeço por quanto ganhei. Ainda tenho coisas a queimar e textos a me perguntar incrédula o que diabos me fez gostar de você. Minha bondade não está a venda ao mesmo passo que não planto maldade por querer, o ritmo deixa as coisas quebrarem no meio da sala e eu só mudo de casa. Mas só mudo depois de me explodir de tanto amar para não ter motivos de voltar. 
Mas acabou. E mesmo que a plateia inteira tenha vomitado as tripas, agora gente só consegue ouvir bilhões de palmas. Porque eu me explodi mil vezes por você. 


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