Metábole

Não consigo sentir a vida passando por mim. Não deveria ser sensitivo? Digo, esse negócio de vida não deveria causar reações perceptivas? A passagem dos dias não deveria soar como o vento em alguma direção? Molhei o dedo indicador e levantei o mais alto que pude (sei que não posso levantar tão alto, mas posso mais que todos que conheço, pelo menos em meu lugar) e não vi direção de vento. Não existe um carro, trem, avião ou cavalo me levando. O que tem é nada. 
Você puxa a cadeira fazendo barulho, ergue e solta da maneira mais ajeitada para ficar desajeitada e fazer mais barulho como se não estivesse notando que está bem na minha frente e que eu não ia olhar em outra direção. Você finge fingir que não percebe que está fazendo um barulho irritante bem na minha frente. Bate de novo a cadeira contra o chão, derruba ela, joga até o próprio corpo nessa atuação engraçada sem graça nenhuma. E começa a falar com uma segurança emprestada que não te veste bem. Parece a roupa de uma menina de oito anos. Tira isso, cara. Fala em um pedestal de prepotência que nunca será seu. E isso parece o último pastel que eu comi. Besta e nojento. Pare de falar com essa voz que não é sua. Depois, joga a cabeça no chão e apanha rapidamente em menos de três segundos, levanta, joga a cadeira para cima e antes que ela caia, vai embora. 
Eu não me mexo, conto até cinco e você volta, como se soubesse (mas não sabe) fingir que não está vendo que estou no mesmo lugar. Porque a vida por aqui parece ter um caso fiel com a inércia e só vou sair desse negócio com uma pancada muito forte. Uma pancada que eu não deixo ninguém dar. E que, se eu continuo olhando você pular em cima dessa cadeira é por saber que seu braço não tem força suficiente contra mim. Esses dias vieram outras pessoas sem essa macacada de cadeira, sentaram e foram até legais, mas eu sou meio deficiente em distinguir a dicção alheia. Ainda mais quando estou sem vontade. Não sei nem que horas levantaram e saíram.
Hoje acordei mais leve porque não dormi. Atrasei seis minutos para andar nas ruas com minhas roupas sem estampas. De informação em mim, já basta minha cara ridiculamente treinada para não passar nenhuma ou transbordar expressões confusas dependendo do nível de idiotice do receptor. Deixa, então, eu rasgar essa passagem para fora da cidade-estado-país porque eu não vou aceitar uma coisa que eu poderia aceitar ontem e, provavelmente, aceitar perfeitamente amanhã. Eu não gosto de coisas que eu não consigo gostar hoje, então, me dá esse papel que se não for rasgável, talvez seja comestível. E é melhor comer um papel que continuar olhando pra alguém que nem quebra a cadeira, nem deixa de arranhar. Estou morrendo de preguiça de continuar olhando para você com a aparência de uma paralítica, pelo menos hoje, pelo menos agora. 
As coisas parecem estar fora de ordem de verdade quando você não consegue enxergar mais a desordem. A única aceleração basal dos últimos dias foi de cafeína ou etanol. E o terremoto que me fez notar que eu fiquei cega frente à desordem foi a frase da minha mãe "minha filha, você precisa de uma terapia". Como assim? Mas não era antes que eu estava mal? Mas antes de que? O que é que tem agora? Como eu digo que o tempo está passando se eu não sinto o movimento? Quando a gente para de achar que está mal é porque as coisas pioraram. Então engole essa porra dessa cadeira enquanto eu engulo minha passagem te dando minhas tão famosas costas.

Comentários

  1. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

    ResponderExcluir

Postar um comentário