Traqueotomia

Não encarar algumas coisas faz um mal progressivo à minha mente, no entanto, encarar outras, causa a mesma coisa. No meio de um banho eu tentei listar as coisas que eu não repetiria. Faz muito tempo que eu não falo de você como sendo o epicentro e hoje eu estou fazendo isso por uma necessidade gigantesca de fazer um corte na traqueia por causa de ontem quando ao tentar dormir, com a cabeça lotada de assuntos, você apareceu em minhas pálpebras com todos os nossos segundos juntos, jogando todos na minha cara. Eu não sei porque você foi tão violento em atirar nossos dias em mim no meio de uma noite de uma segunda-feira. 
E eu sei que foi eu, não precisa dizer, eu não tenho dez anos. 
Cair de joelhos de madrugada numa rua não é o fim dos tempos para mim e provavelmente ainda vou ralar muito minhas pernas pelos asfaltos da vida (literalmente), mas chorar depois disso foi mostrar com uma ótima nitidez a minha alma a você. Primeira coisa que eu consertaria: eu não mostraria a minha alma. Eu não teria te falado sobre a separação dos meus pais. Não teria ido te ver no meio dos dias úteis. Não teria feito nenhum tipo de comida. Muito menos visto seus filmes chatos. Falando isso parece que eu não teria estado contigo, mas, sim, eu teria. Só não teria estado totalmente presente. Não teria, nunca. E a principal coisa que eu não teria feito era ter voltado contigo no sábado que eu deveria ter voltado sozinha para minha casa e aceitado que as pessoas são estúpidas e não merecem nos conhecer se tiverem a intenção de sumir no dia seguinte como se tivessem passado apenas para tomar um chá e não uma estação inteira.
O meu problema foi achar que eu podia hospedar alguém numa estação em que só cabia eu mesma. Resultou que eu tive que optar diversas vezes por você e não por mim. Eu repito para mim todos os dias que eu não sinto sua falta e que eu não consigo pensar em nenhum daqueles dias. Eu repetia até ontem. Eu não chamei você no escuro. Pode ter sido a mudança de lugar da cama. 
Talvez as minhas dores sejam de trás pra frente e por isso tanta gente se atropela nos meus dias. 
Eu minto tanto para mim que às vezes esqueço que não é verdade. 
Como as pessoas deixam de sentir entre um nascer e um pôr do sol? Você acha normal? Eu não acredito que as coisas aconteçam assim e não sei se algum dia eu vá. Quando eu era alheia e rápida, eu consigo dizer que na verdade eu não tinha sentido nada desde o começo e só consigo achar que o mesmo cabe para quem quer que seja. E deve ser essa a parte que mais dói: aceitar que você nunca sentiu nada. E aí eu volto exatamente para o sábado que eu devia ter voltado para casa, porque quando eu vi lágrimas em seus olhos eu acreditei que você sentia qualquer coisa que fosse suficiente para que eu acreditasse e para que eu não machucasse a cara no fundo de uma piscina seca. Essa é a parte que mais dói porque você mentiu no meio de lágrimas e isso não devia ser algo que as pessoas fizessem. 
Óbvio que ninguém devia mentir, mas mentir em meio a lágrimas é desprezível demais. 
Aí eu volto de novo a pensar no quanto me doei e no quanto fui estúpida e não consigo até hoje me perdoar, mas não sei se é só isso. Essa não deveria ser uma tentativa fracassada de transformar tudo que sinto em palavras para achar no meio delas o problema principal e matá-lo. Nem tudo tem uma resposta e talvez nem tudo passe. Eu bloqueei você e abri espaço para outra loucura, não sei se me curei da outra, mas agora você quebrou as jaulas em que eu tinha te prendido e está aqui me atormentando também e por mais que eu já tenha tido uma série de tormentos, não consigo achar um caminho simples de fuga. E aqui é outro problema, se eu fugir, você (em minha mente) vai me achar alguma hora e eu não sou masoquista, não quero você no meu futuro me fazendo sentir coisas ruins. Tudo que eu queria era que quando você tivesse ido embora, tivesse lavado a sua parte que ficou em mim. 
Ontem foi muito fácil sair correndo do quarto, mas não é tão fácil sair correndo da minha própria vida.
Eu estou sendo educada, então, por favor, saia da minha cabeça...



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