Não traga o amanhã...

... porque eu já sei: eu vou perder você.
[...]

Com a cabeça um pouco inclinada para ler o jornal do dia que estava em suas mãos, seus olhos encontraram com os meus por cima dos seus óculos:
- E daí? - Sua voz tinha a mesma suavidade que as das crianças, mas o modo como ela falava tinha a mesma leveza que a superfície de uma faca. No entanto, a cada dia eu tentava me acostumar.
- E daí que eles são seus pais, você não pode pedir pro porteiro avisar que você não está em casa.
- Posso tanto que fiz.
- Isso é maldade e não se faz isso com os pais, mas creio que eu não precise lhe ensinar isso.
- Eles sabem o significado dessa palavra e não vão classificar meu ato dessa forma.
Fiquei calado tentando imaginar o que tinha acontecido em sua infância. Será que ela teve infância? Parecia ter nascido adulta. Estávamos casados fazia quase dois anos e ainda não morávamos na mesma casa. Cada um sozinho na sua. 
Não casamos na igreja. 
Não casamos no papel. 
Não casamos. 
Não nomeávamos nosso relacionamento de namoro nem de casamento, mas como tínhamos um cachorro e eu era o pai (e ela a mãe), para mim, era um casamento.
Depois de quase dois minutos sem receber seu olhar de volta, cansei de ser menos interessante que o jornal e fui para "minha" casa. No fim da noite, na porta da minha casa, com os olhos dançando em lágrimas, ela me pediu para dormir na "minha" casa naquela noite. Seria sem sentido negar.
- Eu queria te amar todos os segundos de todos os dias, mas eu não consigo.
Aquilo eu já sabia e embora fosse (ou não?) singular, me limitei a dizer que todos eram daquele jeito, mas ela insistiu:
- Você sabe que não. E sabe que você mesmo me ama todos os dias. (Óbvio que eu a amava todos os dias.) Agora, exatamente agora, você é tudo que mais importa no mundo pra mim, mas e amanhã de manhã? Alguns dias eu levanto e vou embora antes que você acorde só pra não precisar olhar pra seus olhos abertos, não ter que ouvir o som da sua voz, ver você vivendo porque isso é ruim para mim, porque tem dias que eu acordo e desejaria nunca ter te conhecido só por não sentir nenhum significado em você estar em minha vida. Eu não consigo controlar isso, mas você acredita que eu te amo?
- Sim. (Até hoje acredito.)
- Por quê? Sabia que nas horas que não gosto de você isso também é um motivo? Por que raios você precisa entender a minha inconstância? Você tem a chance de sair agora pela porta e encontrar uma mulher que te ame a qualquer hora, mas simplesmente não vai.
- Talvez eu não vá justamente por poder ir.
- É...
- Por que eu ia querer outra pessoa? Talvez a maioria ame só às vezes, mas quantos tem a coragem de dizer isso na cara do companheiro? Eu acredito que você me ama porque eu conheço você, ou acho que conheço. Suas lágrimas jamais seriam falsas, pelo menos. Eu amo você independente do que você sinta. Talvez você até tenha um problema mental aí, mas... Fazer o quê?
Rimos. 
Dormimos.
No dia seguinte, saí antes dela (como já tinha feito outras vezes também), mas não porque eu também tinha crises de "não-amor", mas para que ela sentisse minha falta, para que ela pudesse respirar o mundo sem mim e ver que com meu cheiro era muito mais agradável viver. Sempre dava certo. Eu nunca dizia onde eu ia, deixava ela pensar que estava em alguma casa de shows, algum bar, qualquer coisa que sua imaginação feminina pudesse permitir, mas nunca disse que eu só estava em frente a um lago esperando anoitecer e poder voltar.
Eu nunca disse.
Naquele dia não deu certo.
Quando eu voltei, ela não estava.
Ela nunca mais esteve.
Esperei três anos, todos os dias. E nada.
Aí me trouxeram para esse lugar onde passo a maior parte do tempo em um quarto pequeno e imensamente branco. Não sei quanto tempo faz que estou aqui. A última vez que ouvi boatos, eram cinco anos, mas, pra mim, eu entrei aqui ontem, por isso, ainda dá tempo de esperar por ela...




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