Monólogo Dialogado - O Outro Lado da Sanidade


Parte II


V

O carro estava em movimento, mas o céu não, eu continuava olhando as estrelas. Deitada. Meu pai deitado do meu lado, meu irmão dormindo com a cabeça na minha barriga. Estávamos deitados na carroceria de um carro que tinha o estilo de para onde estávamos indo: sítio. O irmão da minha madrasta dirigia rápido entre os matos. Eu teria medo de onças, cobras, lobos, elefantes ou zumbis aparecerem se estivesse sozinha. Mas meu pai estava comigo.
 Ele me mostrou, ou tentou, touro no céu. O desenho que as estrelas formavam. Explicou que não dava pra ver escorpião porque onde um estava, o outro nunca poderia estar também.
Foi a explicação mais aceitável para entender porque eu e o amor da minha vida estávamos separados. Eu era de touro.
Touro e escorpião. Separados. Nunca no mesmo lugar
Eu tinha dezessete anos e estava passando as férias com meu pai. Nunca soube se ele não gostava de mim, mas acho que gostava sim. Nunca conversamos muito, mas algumas das poucas e curtas conversas que tivemos ficaram marcadas e surgiam de vez em quando em momentos quaisquer. Ele era tão ou mais calado que eu. Fumava, bebia e ouvia as mesmas coisas que Cobb.
- Pois é, ainda vou conhecer seu pai. - Cobb segurava minha mão enquanto caminhávamos de madrugada pelas ruas.
Quis mais uma vez perguntar como eu tinha parado ali, mas não tinha como perguntar sem parecer doente.
- Vá. Vocês serão bem amigos, tenho certeza. - Eu disse com sinceridade.
- Mas você tem que ir comigo.
- Claro, meu filho, imagine você chegando sozinho lá. Ele provavelmente ia se assustar.
Rimos juntos. Ele me abraçou.
Dormi no quarto dele naquela noite. Ele dormiu em outro, não sei em qual.

VI

Ao acordar, não tinha ninguém na casa dele. Que ele sumisse eu já tinha aceitado, mas será que todos naquela casa eram assim também? Não me importei muito e apenas saí dali para ir embora. Na rua também não tinha ninguém. Talvez fosse muito cedo. Fui até a praça mais 
próxima para pegar um ônibus e ir para casa. Depois de uma hora inteira sentada e esperando, conclui que tinha algo estranho. Nenhum ônibus, nenhum automóvel passara. Nenhuma pessoa. Nenhum animal. Levantei e comecei a andar no caminho da minha casa. O sol àquela hora ainda era agradável. Depois de andar por vinte minutos tive a certeza de que estava sozinha na cidade. Peguei meu celular e tentei ligar para minha mãe. Ninguém atendia. Meu pai em outro estado. Nada. Liguei para todos os contatos da minha agenda e nenhum atendeu. Comecei a entrar em pânico, mas me obriguei a manter controle. Se eu estava sozinha o que poderia acontecer? Eu não iria machucar a mim mesma. Respirei, contive o choro e voltei pro parque onde eu estava no dia anterior.
No primeiro banco depois da entrada, havia um homem sentado. E eu conhecia. Era Selton. Era de escorpião. Era o amor da minha vida por mais estúpido que esse termo possa parecer. E por mais que eu já não tivesse certeza se ainda o amava, tinha a de que um dia eu havia o amado de verdade.
Ele me olhava sorrindo e, mesmo sem espelho, eu podia ver meu rosto transmitindo medo.
- Oi, minha pequena.
Uma tempestade de lembranças de momentos felizes inundou minha mente e eu tive medo de sair daquele lugar, segurei forte o momento presente e fiz minha voz sair:
- O que está acontecendo? Cadê todo mundo?
- Dei pause enquanto todos dormiam. Planejamos fazer isso um dia, lembra? - Ele dizia sorrindo.
Aquilo era insano.
- Planejamos quando nos amávamos. Você deixou de me amar. Você me deixou. E a história toda já conhecemos. Não acho que seja possível dar pause em tudo, mas que a cidade está estranha, ela está. E sei lá se isso é real, mas se tiver, realmente, no seu controle, desfaça.
- Eu te amo. Eu sempre te amei.
No fundo eu sempre tinha acreditado que ele sentisse aquilo, mas depois de tantos meses pedindo pra ele voltar e ele negando-se a isso, eu já não me importava com ele mais do que comigo. Não consegui dizer que o amava também, o que, em parte, me deixou feliz.
- Ouvi dizer que o amor é muito bonito, boa sorte.
Girei nos calcanhares e comecei a andar.
- Eu não consigo amar outra pessoa.
- Nem eu, Selton. Mas eu fiz tudo que podia e você não quis. - Eu continuava andando.
- E o que eu faço? - Ele disse e começou a andar em minha direção, mesmo eu estando de costas.
Uma lágrima, proveniente da inundação que ainda estava em minha mente, desceu pelo meu rosto.
- Alie-se ao tempo.
Ele segurou meu braço e me virou.
- Mas você ainda me ama!
- Amo?  E por que eu amaria? Deixei o mundo pra trás e dei o meu a você. E o mundo que deixei inclui não só meus amigos, desejos, sonhos, vontades e família, inclui a mim também. Você disse nos meus olhos que não gostava mais de mim. Tudo para ficar com seus amigos. Álcool. Festas. Pessoas diferentes. E ainda assim eu te amava. Porque eu te amava pelo que você era, pelo que eu sentia por você, não pelo que você sentia por mim. Minhas noites sem você foram terríveis. Os dias também, claro. Eu não conseguia olhar cada esquina dessa cidade sem te ver comigo nelas, você sabe o que é isso? Nunca saberá. Eu entrei na porra de um lugar onde só existia metade de mim e inúmeras lembranças suas. Mas eu saí, cara, por mais difícil que tenha sido, eu saí. E se ainda amar você significa que eu deva voltar para você para, provavelmente, posteriormente, entrar novamente nesse lugar, então eu não amo porque eu não quero!
Ele soltou meus braços e chorou.
Dei as costas outra vez e andei mais rápido.
O pior era que eu não sentia nada. Nada ruim nem nada bom dentro de mim.
Não olhei para trás. Fui para casa, mesmo sem ninguém na rua. Se esse quadro permanecesse assim para sempre eu não me importaria muito porque já havia me sentido mais sozinha em outras ocasiões, dessa vez, eu tinha a mim, pelo menos.
Deitei na minha cama, no meu quarto, e dormi.

VII

O teto é imóvel  e mudo como todo o resto desse quarto. Assim como o meu coração que também já não faz outra coisa além de bater por si mesmo.
Embora estar aqui seja ruim, não deve ser pior do que lá fora onde o sol continua brilhando intensamente e por mais que arrastem-se as horas ou voem ou parem, o cenário não muda, fica lá, apenas lá, olhando pra mim, fazendo perguntas mudas. E eu não sei se ele muda para todas as outras pessoas, mas se mudasse ou não, quem delas iria ver? Quem se daria ao trabalho de sair de si mesmo apenas para analisar o cenário onde vive? Para tentar encontrar a placa que avisa o sentido de viver? Por que raios alguém faria isso? E por que, eu, na minha normalidade de sempre, inventei de fazer?
Às vezes eu sinto o vento assanhar meus cabelos bruscamente ao mesmo tempo que toca meu rosto com tamanha delicadeza, e eu me pergunto como isso é possível, e me pergunto mais de uma vez o porquê de eu ter buscado alguma vez características assim em um ser humano quando eu podia ser inteiramente do vento. E o vento, inteiramente meu. Mas agora é tarde demais e eu já devo ter completado todas as ações e reações humanas possíveis. E me frustrei. Então, não tem mais graça. Aí eu começo a pensar se o que eu esperava sentir no fim dos meus relacionamentos era algum tipo de graça.
E isso eu só consigo responder rindo muito.
Sem mover um músculo facial.
Aí eu volto a olhar pra janela. E ouço três badaladas. E vejo a claridade do sol. Do mesmo jeito.
Sempre.
Eu poderia correr sem parar dentro do quarto. Esmurrar a parede. Ou o mais óbvio: tentar abrir a porta. Mas, eu já devo ter feito tudo isso.
Eu poderia também pular pela janela. Mas, eu já devo ter feito isso.

VIII

Eu ainda não sabia o que dizer quando ele pronunciava as últimas palavras de uma declaração. Quando sua boca se fechou, a minha abriu-se num sorriso, pois se eu ficasse nervosa involuntariamente eu ia sorrir ou, em casos extremos, rir.
- Não vou submeter meu coração a nada. - Ouvi-me dizer.
E o vi chorar.
Lembro de todas as cenas desse dia. A única coisa que não lembro é do nome dele e eu poderia não me perdoar por isso, mas eu me amo demais, então não poderia ficar com raiva de mim mesma.
Ele era um cara bom, apareceu quando Selton me deixou com o coração na mão. Tinha uma história de dor de amor parecida com a minha e ainda assim fazia de tudo para me ver sorrir, até abrir mão do próprio sorriso. Por algum tempo eu acreditava que  gostava dele de um jeito diferente, mas quando eu tive todas as certezas de que ele me amava, eu cansei. E é terrível dizer isso, mas enjoei.
Não sei o que acontecia comigo, mas eu não me sentia bem com o fato de alguém gostar de mim, sentia um tédio maluco correr nas minhas veias e via a pessoa como algo inferior a mim, sei, mais uma vez, que é horrível dizer isso, mas é assim.
Continuei sentada no banco olhando pra ele e sorria enquanto ele chorava.
Eu estava apenas nervosa.

John era um colega de uma amiga que eu tinha desde os dez anos de idade. Fui até a casa dele para vermos um filme. Nunca fui com outra intenção, embora, em condições normais, uma menina que nunca viu um menino antes, só se daria ao trabalho de ir ver um filme sozinha com ele em sua casa se alguma coisa além do filme pudesse acontecer.
Ele veio me beijar.
Não o beijei.
Talvez com ele eu tivesse sido feliz.
Nunca poderei saber.

Michael era um ótimo amigo até induzir sua irmã a ficar com Selton quando eu ainda o namorava.
O tempo passou.
Michael e eu ficamos, então, mais amigos ele apaixonou-se por mim da primeira vez que Selton me deixou.

Fiquei com o irmão de Michael.
Eu sabia que tinha machucado, mais uma vez, os sentimentos de alguém.
Nunca mais o vi.



Tive outros casos de pessoas que gostaram de mim e eu, simplesmente, não me manifestei e em mais outros, fiz o favor de afastá-los.
Talvez a única companhia certa para mim fosse eu mesma.

Comentários