Monólogo Dialogado - O Outro Lado da Sanidade

Parte I

PREFÁCIO

Foi numa brincadeira que eu esqueci o caminho de volta. Na verdade, não esqueci, pois consigo até lembrar de por onde dar os passos para voltar, mas apagaram a luz, trancaram as portas, não sei exatamente, mas não consigo mais sair e já não sei onde estou. Quem quer que consiga me ouvir, e que esteja fora disso, não hesite em oferecer-me algum tipo de ajuda mostrando como é que sai desse corredor asfixiante, ensurdecedor e ladrão de emoções. Por favor.















I

O cheiro do álcool que vinha da mesa a meio metro de mim lembrava o tempo que eu achava um ato estúpido o de beber. O cheiro de nicotina que a cada dia tornava-se mais familiar ao meu olfato acionava a lembrança da minha voz dizendo "não beijo fumantes". A vida apenas na sua insistência de apresentar-se ironicamente colocado essas duas drogas no garoto que eu estava a fim. Sem amor. Sem paixão. Preferia chamar de obsessão. A palavra escolhida para a sensação ou sentimento, como queira, pesava tanto que ninguém realmente acreditaria que era aquilo que eu sentia. Mas talvez no fundo fosse mesmo. Ou paixão. Ou amor mesmo. Se é que eu sei o que é amor.
Eu não sei há quantos minutos, horas ou dias estou nesse quarto. Um quarto frio o bastante para eu dormir confortavelmente pelo resto dos meus dias, mas talvez eu esteja dormindo. Eu não sei. Do outro lado da rua há um muro de pedras cinzas de esquina a esquina. Acho que o que ouvi foi um sino. Três badaladas. Fico apenas sentada nessa cadeira que está exatamente no meio do quarto e exatamente em frente à única janela a qual me permite a visão do tal muro. E pela claridade do ar lá fora, devem ser três horas da tarde.
- Acho que as pessoas enlouquecem quando tentam fugir da realidade. E eu não quero fugir da realidade. - A voz de Cobb era linda porque ele era Cobb, mas tornava-se mais linda ainda, fugindo às perguntas de possibilidade quando ele cantava e embora essa frase não tivesse sido dita acompanhada por uma melodia, ela ficou presa em minha memória mais do que qualquer outra música que eu já tivesse ouvido. Foi a porta de entrada, assim eu acredito. 

- E nunca quis? - Eu me sentia tão bem perguntando qualquer coisa a ele, falando qualquer coisa, qualquer palavra, até se começássemos a falar textos sem sentidos ainda assim eu me sentiria em paz.
E acho que nessa paz eu me perdi.
- Não. Nem pretendo querer. - Ele sorriu e soprou fumaça.
Depois disso eu não sei o que aconteceu. Não lembro muito daquela noite. Não entrei no mundo dele naquela noite. Entrei nesse mundo que estou agora. Onde vim parar sozinha. Embora pareça que o Cobb seja um protagonista nisso tudo, ele não é. O que eu sentia por ele talvez, mas ele não. A única coisa a protagonizar essa história é o lugar com uma porta fechada sem chave que eu entrei.

II

As paredes desse quarto são brancas. Sem sujeira alguma. Lembro de já ter estado em algum lugar parecido, mas vai saber em que vida! Passei os braços em volta das minhas pernas e encostei o queixo no joelho direito quando ouvi a porta abrir-se atrás de mim.
- Já está dormindo?
Estava deitada quando Cobb abriu a porta do banheiro e veio em minha direção. Sentei-me e sorri meio desajustada. Olhei em volta procurando a janela e o sol quente brilhando lá fora. Nada. Um quarto escuro. Outro ambiente. Tive vontade de perguntar como era possível o teletransporte e todos os detalhes, mas eu não ia querer ser internada justamente no momento em que Cobb, a minha obsessão - porque estaria eu mentindo se dissesse que ele era o amor da minha vida, pois eu tinha tido um amor. Um amor que me levara também para um corredor desconhecido, mas Cobb, inconscientemente,  e eu, conscientemente, abrimos a porta daquele local. E eu saí, claro. - estava deitando a cabeça nas minhas pernas.

Ele apaixonou-se por mim por uma noite. Lembro de ver seu contorno no escuro, com o rosto exatamente acima do meu. Minha cabeça podia ter todas as confusões do mundo, meu corpo podia reclamar de dor, mas eu estava bem de estar com quem eu queria estar há três anos. E me deixei estar inteiramente com cada célula porque sabia que ia acabar. Em algumas horas. Minutos...Respirei fundo e fechei os olhos. Ao abrir, o muro de pedras estava lá, no mesmo lugar.

III

O corredor tinha algumas plantas e o piso ainda estava gelado da água que minha avó havia jogado nele. Eu me sentia numa praia. Mar. Navio. Tripulação de amigos invisíveis que nunca apareceram. Eram tão invisíveis que nem eu mesma cheguei a os ver um dia. Comecei a analisar o verde das plantas e não sei como nem porquê iniciei um pensamento que o verde muda em cada mente. O verde que eu vejo é verde, mas o verde que minha vó enxergava era o preto que eu via. Sabe-se lá porque eu pensei nisso.
 Isso foi há onze anos.
E minha vó morreu há cinco.
Embora eu nunca a tivesse chamado de mãe, ela era como uma para mim. Uma típica história: netos criados por avós. Minha mãe, a que me gerou, foi muito ausente em minha infância, só não mais que meu pai que "me deixou" quando eu tinha três anos de idade.
A lembrança mais antiga que eu tenho é esta:
O dia já estava dando lugar à noite quando meu pai me pegou pela mão e fomos procurar algum lugar em que vendesse uma pilha para que minha boneca pudesse voltar a chorar. Não encontramos. Nem sequer procuramos direito. Voltamos para casa, lá estava minha mãe com seu stress de sempre que era quase concreto. Brigou com ele por ele ter bebido muito,mais uma vez. Fiquei quieta, aquilo não me incomodava mais do que minha boneca que não chorava mais. Então ela fez a pergunta que eu sabia, sem saber como sabia, que a resposta seria para sempre:
- Quer ficar com mainha ou quer ir com ele?
Não sei por quê respondi o que respondi, mas respondi entre choros e vi ele chorando também. Senti a falta dele por todos os dias que nasceram depois desse.
Eu tinha três anos.

IV

Ondas de transmissão de uma agradável música começaram a atingir  minha audição no segundo gole de álcool etílico do quinto copo que eu levava a boca naquela noite. Sorri para Cobb e ele estendeu a mão para mim, entreguei a minha a ele. Levantamos juntos. Eu não sabia dançar, mas não importava porque a música era boa demais. Cobb era incrível demais. E eu era feliz demais. Sua mão estava apoiada na minha cintura e às vez eu girava no controle da outra mão dele entre risos e sorrisos. E paz.
Depois que a música acabou, eu finalizei também a ingestão de bebidas. Fomos, eu, Cobb e todos os presentes, para um parque da cidade.
Ao chegar, sentei no topo de uma escadaria de pedras e encarei em silêncio o céu que se  estendia à minha frente.
A primeira vez que amei, tinha quatorze anos. Só soube que era amor porque doeu ao ter que deixar pra trás, porque acordei suada e chorando em várias madrugadas. Porque pensei nunca mais sentir aquilo outra vez.
Mas senti.
Da segunda vez, eu tinha quinze. Entrei, como a maioria das minhas entradas: por brincadeira e sem espectativa. Não sentia muita coisa no início. Machuquei muito e continuei ilesa. Até que comecei a amar. Não sei exatamente em que ponto comecei a sentir isso, mas sei que quando saiu do meu controle, eu estava sendo deixada sozinha. Mais uma vez, só que por outra pessoa. Fiz as coisas mais absurdas que pode-se fazer por "amor". Fui infantil, possessiva, ultrapassei o senso do ridículo, pedi pra voltar. Até me humilhei. E cheguei no limite. Até passei dele. Aí encontrei Cobb.
Que nunca foi meu.
E, provavelmente, nunca será.
- Eu não quero viver muito porque quando eu estiver bem velho alguém vai ter que ficar me dando banho e cuidando de mim. Isso é deplorável! - Se ele já estava falando a algum tempo, eu havia perdido o começo da história.
- É, Cobb, por um lado isso não é muito bom.
- Por nenhum lado é bom! Se eu viver até quarenta anos já estou feliz. Por isso vivo intensamente.
- E por isso fuma. Para morrer mais rápido.
Ele sorriu concordando e inalou fumaça.
Aquele parque não era o mesmo que eu visitava com o meu antigo amor. Era diferente porque agora eu era diferente.
Parei de encarar o céu à minha frente e deitei no chão encarando o céu que estava acima de mim. Cobb olhou pra trás para ver o que eu estava fazendo. Jogou o resto do cigarro fora e deitou do meu lado.
- Não saia de perto de mim.
Olhei para ele pelo canto dos olhos e vi que ele estava de olhos fechados. Ele esquecia realmente que a pessoa que vivia sumindo era ele. Mas aí pensei que talvez fosse realmente eu quem sumisse.
Não respondi nada. Apenas segurei sua mão e voltei a encarar o céu.

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