Cinema e Mente



Existe uma corrente filosófica (embora muitos afirmem ser apenas uma maneira de ver o mundo e não exatamente uma corrente) que tem como posição a afirmação de que tudo que esteja fora de sua mente são fontes inseguras de realidade. Essa corrente é o Solipsismo (palavra derivada do latim solus (sozinho) e ipse (si mesmo)).
            Se você parar pra pensar, a única coisa da qual realmente pode ter certeza é do interior de sua mente: que você pensa, logo, que você existe. A princípio, esse pensamento pode ser um tanto quanto egoísta ou até mesmo esquizofrênico (no sentido de perda de contato com a realidade), mas basta dizer que, até hoje, não há nenhuma teoria que derrube de uma vez tal pensamento, não existe forma alguma de eu provar a você que eu existo, é claro que uma das primeiras coisas que você vai pensar é que pode me tocar e me sentir enquanto matéria, mas isso é só mais uma de todas as experiências que você sente e que essas, por sua vez, dependem dos seus sentidos, os quais levam sensações até o interior da sua mente, um lugar, o qual, eu não posso entrar. E então, para onde voltamos? Onde tudo acontece no único lugar que você conhece: sua mente.
            Então, essa é a questão: você não pode ter certeza de que eu existo porque não pode entrar na minha mente e ver o mundo da mesma forma que eu vejo.
            Enquanto na realidade isso não é possível, no cinema é. Alguns filmes relatam, de forma fictícia, como se daria o acesso à mente. Quem, em algum ponto da vida, não quis esquecer algum (ou alguns) momentos passados? Em "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças" (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), Joel (Jim Carrey) decepcionado ao descobrir que Clementine (Kate Winslet), sua ex-namorada, resolveu apagá-lo de sua memória com um tratamento experimental, decide fazer o mesmo. Não seria maravilhoso poder apagar das lembranças tudo aquilo que nos fez mal? Se tivéssemos tal controle da mente, será que realmente teríamos tamanha coragem para deletar de uma vez algumas partes de nossas vidas?

Outra demonstração de acesso à mente é apresentada em “A Origem” (Inception, 2010). No filme, a mente humana assume seu estado mais vulnerável no momento em que estamos dormindo e é nesse momento que são roubados os nossos segredos. Se é possível roubar o que tem dentro apenas de nossas mentes, por que não seria possível, também, colocar algo? É nessa ideia que o filme se desenvolve. Em uma cena, Cobb (Leonardo DiCaprio), no meio de uma conversa, pergunta a Ariadne (Ellen Page) se ela lembra como chegou até ali e só então ela percebe que está sonhando, porque nos sonhos ninguém nunca lembra de como chegou onde se encontra.
 


Em “Matrix” (The Matrix, 1999), a realidade é posta (novamente) em dúvida. Será que tudo o que vivemos e aprendemos até hoje não foi, de alguma forma, determinado por alguém (ou algo, (no caso do filme a realidade é controlada por um sistema inteligente e artificial)) ou alguma mente superior à nossa? Os solipsistas extremistas creem apenas na existência do “eu” e duvidam da existência de todo o resto. Os solipsistas epistemológicos, porém, posicionam-se na afirmação de que, pelo menos, outra mente, deva existir além da dele, pois, para viver tal realidade (mesmo que falsa) foi necessária alguma imposição externa, já que sua própria mente não teria um motivo de criar tudo aquilo que lhe cerca. Neo (Keanu Reeves) teve o privilégio de conhecer a verdade sobre a realidade. Será que não existe a possibilidade de que, até hoje, nós não tenhamos tido?
 




Há outra forma de mexer com a mente humana no âmbito cinematográfico: a interpretação. É o que Julia Leigh faz em “Beleza Adormecida” (Sleeping Beauty, 2011), é claro que todos os filmes possibilitam diversas interpretações e que, dificilmente, os resumos de duas pessoas sairão iguais, para ser mais radical, segundo o solipsismo, é impossível saber o que você estava vendo na mesma cena que estava assistindo comigo do lado, é claro que se alguma personagem for esfaqueada, provavelmente, veremos sangue, mas não há nenhuma maneira de você saber os detalhes que passam por minha percepção ou as tonalidades das cores que enxergo, por exemplo. Mais uma vez porque você não pode, sequer, ter a certeza de que eu existo. Voltando ao filme dirigido por Julia Leigh, de cada cem pessoas que o assistiram, noventa o descreveram como uma interrogação, as outras dez tiveram interpretações bem distintas. Seria proposital da diretora? Alguns afirmam que, por isso, o filme é uma das piores produções já feitas, mas é como diz Millôr Fernandes: “Se se ganha dinheiro, o cinema é uma indústria. Se se perde, é uma arte.”




Observação: O parágrafo seguinte contém spoilers.
            Agora, pisando um pouco mais no chão, seria possível que outras pessoas conseguissem fazer com que você duvidasse do seu próprio “eu”? Em “Ilha do Medo” (Shutter Island, 2010), Teddy (Leonardo DiCaprio) ao final já não tem certeza (e a dúvida cai também (senão principalmente) em quem assiste) de quem é: um homem bom ou um assassino? Duplas personalidades sempre tendem a causar sucesso nas telas, como é o caso também de “Clube da Luta” (Fight Club, 1999) em que o tempo inteiro os personagens principais pareciam tão bem duas pessoas diferentes, tanto para ele, quanto para nós. “O Amigo Oculto” (Hide and Seek, 2005), “A Casa dos Sonhos” (Dream House, 2011) e “Aterrorizada (The Ward, 2011)” também são claros exemplos de filmes nesses moldes.
            Enquanto não podemos apagar memórias, entrar em sonhos alheios, voltar ao passado através de nossa própria mente na tentativa de consertar erros (como faz Evan (Ashton Kutcher) em “Efeito Borboleta” (The Butterfly Effect, 2004)), ficamos sabendo sobre a existência da mente do próximo somente através das telas e, fora delas, continuamos na dúvida do que exatamente é real. Será que não estaríamos, por exemplo, em um tipo de show da vida (The Truman Show, 1998)?